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Entrevista Clemente Nascimento


Clemente é uma das figuras seminais do punk brasileiro, talvez mesmo antes do punk receber esse nome. Fundador do Restos de Nada e dos Condutores de Cadáver, o cara participou do início de uma cena que crescia pelas periferias paulistanas e representava uma geração sufocada pelas rebarbas de uma ditadura militar. "Era uma época selvagem, nos primeiros shows do Restos nem punks tinham para assistir ao show, fizemos um show em uma casa de metal e os caras queriam tirar a gente do palco na porrada! A nossa gangue estava lá em peso e nós derrubamos os mais afoitos que tentaram subir no palco. Na real, mais ensaiávamos do que fazíamos shows, não tinha lugar pra tocar. Depois fui para o Condutores de Cadáver que se chamava N.A.I. (Nós Acorrentados no Inferno), mas o primeiro show que fizemos juntos foi tão ruim que mudamos de nome para Condutores de Cadáver", lembrou Clemente.

Entretanto, o músico ganhou destaque nacional à frente dos Inocentes, grupo extremamente respeitado não apenas por punks, mas por roqueiros em geral. Ao lado dos Inocentes, Clemente ajudou a consolidar um estilo ainda desconhecido e enraizado em uma cena vista com muito preconceito. "Os Inocentes se destacavam entre as bandas da época pois tínhamos equipamento e sabíamos tocar nossas músicas, e ainda tínhamos uma postura muito forte e opinião sobre tudo, com dezoito anos éramos veteranos (rs)!", explicou.

Bom de papo e extremamente atencioso, o músico que é tido como um dos Papas do movimento punk, ainda falou sobre o disco Grito Suburbano, o primeiro registro do estilo no Brasil, e sobre O Começo do Fim do Mundo, primeiro grande festival punk que chamou atenção (na marra) dos meios de comunicação. "Foi o ápice do movimento punk na época e também o começo da queda, pois foi ali que as tretas recomeçaram e os shows ficaram escassos. Mas foi um verdadeiro marco, foi maravilhoso", falou Clemente.

O líder dos Inocentes, que atualmente também toca com a Plebe Rude, também relembrou passagens negativas, como a forte censura em suas canções, e outras nostálgicas, como abrir show para o Ramones. Seja com os Inocentes ou com a Clemente & A Fantástica Banda Sem Nome, novo projeto paralelo, Clemente é uma lenda viva do rock nacional e merece todo o reconhecimento possível.


Ugo Medeiros – Você é uma figura associada, podemos dizer seminal, ao punk brasileiro. Mas antes do estilo emergir no cenário underground nacional, o que você escutava?


Clemente Nascimento - Cara, eu comecei em 1973 ouvindo rock como todo mundo. Muito rock'n'roll dos anos 1950, pois vivíamos um revival dessa fase, ouvia Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino, depois as coisas clássicas como Black Sabath, Led Zepellin, Kiss, Jimi Hendrix e outras coisas. Isso tudo até conhecer o Douglas Viscaíno em 1976 e ter acesso à coleção de discos do cunhado dele: Blue Oyster Cult, Atomic Rooster, Cactus, Armagedon, Blue Cheer, Lucifer's Friends, Pink Faires. Além da tríade Stooges, MC5 e New York Dolls, que é a base do punk.


UM – Os punks de 1977 pregavam o ódio ao rock progressivo, eram contra aquelas músicas de vinte minutos e solos de sintetizador intermináveis. Na época você também aderiu à corrente? Hoje em dia você curte escutar, por exemplo, Tarkus do Emerson, Lake & Palmer ou Echoes do Pink Floyd (ambas músicas longas com aquele clima psicodélico)?


CN - Cara, tudo é o contexto da época, sempre a geração nova contesta a anterior. Esse "ódio" é porque a molecada estava de saco cheio daquelas músicas de 25 minutos que não davam para dançar, "pogar" e chacoalhar o esqueleto, não contestavam o que estava acontecendo. A molecada queria agitação, não queria saber se o cara tocava guitarra melhor que o Beethoven, isso não interessava mais. Mas, claro, a gente já tinha ouvido muito tudo isso.


UM – O punk nasceu nos EUA, isso é um fato, mas havia bandas que foram importantes na formatação daquele estilo que viria a surgir. Bandas como New York Dolls e Stooges, que tocavam alto e tinham aquela atitude “foda-se o senso comum”. Velvet Underground que de nada tinha a ver com a música punk, mas trazia uma estética minimalista, pós-moderna, representava o público da liberdade sexual e junkie de heroína. Ou seja, tirando o MC5, que era extremamente politizado, essas bandas pré-punk não tinham a política como questão central. Você acha que o punk brasileiro já nasceu atrelado nesse cunho político?


CN - Mas o punk brasileiro não era só política quando nasceu, foi ficando assim com o tempo por causa da situação do país. Temos que pensar que são várias gerações de punk e eu venho da primeira, que era niilista, dadaísta e coisa e tal. Nem moicano tinha e o Hardcore não existia, isso veio com a segunda geração. E são várias bandas que foram influenciando a garotada, cada uma a sua maneira. Por exemplo, descobriu-se que o Death, banda afro-rock de 1971, já dava sinais do que seria o punk anos depois. Bandas que hoje muitos nem consideram punk já faziam parte do meu universo, como Gang of Four e The Fall. Sem falar que naquela cena não ouvíamos só punk, mas tudo que tinha atitude, como o The Specials e as bandas da Two Tone [N.E: gravadora inglesa destinada ao ska], o início da carreira do Devo, The Cramps e Stray Cats. Nada disso era famoso, fazia parte da cena underground, tenho até hoje o Three Imaginary Boys do The Cure que comprei em 1979 quando saiu e ninguém conhecia. Mas em cada país o punk foi ganhando características locais, não fazia sentido seguir modelos que não cabiam em nossas perspectivas.


UM – Você passou pelo Restos de Nada em 1979 e logo depois tocou com os Condutores de Cadáver. Poderia falar sobre essa época?


CN - Cara, eu fundei o Restos de Nada em 1978 junto com o Douglas Viscaíno, que foi quem deu a identidade da banda. Quando sugeri o nome e escrevi a música Restos de Nada, fiz pensando nele, depois chamamos o Carlinhos para a bateria e o Ariel foi o último a entrar para fazer os vocais. Chegamos a fazer um show com outro vocalista, mas quando o Ariel entrou, definimos o repertório que ficou conhecido. Era uma época selvagem, nos primeiros shows do Restos nem punks tinham para assistir ao show, fizemos um show em uma casa de metal e os caras queriam tirar a gente do palco na porrada! A nossa gangue estava lá em peso e nós derrubamos os mais afoitos que tentaram subir no palco. Na real, mais ensaiávamos do que fazíamos shows, não tinha lugar pra tocar.

Depois fui para o Condutores de Cadáver que se chamava N.A.I. (Nós Acorrentados no Inferno), mas o primeiro show que fizemos juntos foi tão ruim que mudamos de nome para Condutores. Foi a banda que começou a organizar festivais, o primeiro foi durante o carnaval de 1980 e chamamos o Cólera e o Restos de Nada para tocar, que estava com a Irene no baixo no meu lugar. A banda que produzia seus próprios shows, tocamos em vários lugares e nós que produzimos o primeiro show punk na PUC, no Espaço Beta.


UM – Nisso vem os Inocentes, banda importantíssima no punk nacional. Poderia falar sobre o início da banda? A banda participou da coletânea Grito Suburbano, um marco do punk...


CN - O Inocentes foi uma consequência da nossa evolução musical, fomos aprendendo a tocar, comecei a compôr músicas como Garotos do Subúrbio e Pânico em SP, que o Índio não conseguia cantar. Eu (baixo), Callegari (guitarra) e o Marcelino (bateria), a base do Condutores, tivemos que montar uma banda nova para fazer isso. Chamamos o Mauricinho, que gravou o Grito Suburbano, e depois o Ariel. Os Inocentes se destacavam entre as bandas da época pois tínhamos equipamento e sabíamos tocar nossas músicas, e ainda tínhamos uma postura muito forte e opinião sobre tudo, com dezoito anos éramos veteranos (rs)!

O Fábio, do Olho Seco e dono da Punk Rock Discos, queria fazer o registro das bandas da época. A coletânea teria ainda o Anarcóolatras e o M19, não me lembro porque eles não entraram. O vocalista do Anarcóolatras era o Alemão, dono do Hangar 110. O disco saiu só com o Inocentes, Cólera e Olho Seco e fizemos história.


UM – Algumas pessoas taxam os Inocentes como pós-punk a partir de 1984/85. Isso te incomoda ou você de fato teve essa influência de bandas como Fugazi?


CN - Não incomoda não, pois foi isso mesmo que fizemos na época. Como te disse, quando comecei ouvir punk não ouvíamos só punk, mas toda aquela cena alternativa da época e adorávamos o post punk. Estávamos de saco cheio das limitações estéticas, criativas e do policiamento político dos punks paulistanos, sem falar nas brigas, eles estavam mais preocupados em brigar do que com a música e com o movimento. Simplesmente deixamos eles fazerem o que estavam a fim e fomos participar de outra cena, a do rock paulista, queríamos tocar e não brigar.


UM – Até o fim do regime militar suas músicas foram bastante censuradas. Poderia falar sobre essa triste experiência?


CN - Durante o regime militar era difícil falar o que sentíamos, tínhamos que usar subterfúgios. O EP Miséria e Fome era para ter sido nosso primeiro LP, mas teve dez músicas censuradas, na verdade foram as treze. Mas aí mudei a letra incluí a frase "Não estou culpando ninguém, não estou acusando ninguém, apenas conto o que eu vi, o que senti" e mudei o nome da letra só para passar na censura. E deu certo. Mas não era só o punk que sofria com isso, mas toda a música brasileira, teatro e coisa e tal, e todos davam o seu "jeitinho". Hoje acho o controle de informação muito pior, pois ele vem disfarçada de opinião.


UM – E por falar em censura, uma das suas músicas mais marcantes foi Pátria Amada. Poderia falar sobre a canção em si e a importância na sua carreira?


CN - Pátria Amada é do nosso segundo disco pela Warner, Adeus Carne, ela retratava a crise na época do governo Sarney, mas parece que faz sentido até hoje. Foi uma música muito executada nas rádios rock e que fez parte da formação de toda uma geração roqueira que se destacou na década de 1990.


UM – Um dos eventos mais históricos foi O Começo do Fim do Mundo, um dos primeiros festivais punk no Brasil. Aquilo abalou São Paulo! Como foi?


CN - O Começo do Fim do Mundo foi um dos maiores festivais punk do mundo na época, reunião de vinte bandas de São Paulo e ABC. Nenhum tinha sido tão representativo, mas para ele acontecer tivemos que desenhar uma trégua entre São Paulo e ABC, pois as tretas comiam solto, por isso reunimos tanta gente. Foi o ápice do movimento punk na época e também o começo da queda, pois foi ali que as tretas recomeçaram e os shows ficaram escassos. Mas foi um verdadeiro marco, foi maravilhoso.


UM - A cena punk tem muito da coisa de chamar de “vendidos”, no caso dos Inocentes foi quando assinou com a Warner? Ficou chateado com aquela reação?


CN - Claro que não, toda vez que uma banda extrapola a sua cena e começa a ser conhecida por mais gente é chamada de "vendida" e coisa e tal, mas todos adoram Pátria Amada que é uma música da época da Warner, olha o paradoxo (rs). Bandas como Ramones tocavam na rádio no Brasil e todo mundo adorava, é aquela incoerência do cara que gosta muito, mas fica puto porque a banda não toca mais só naqueles lugares que frequenta.


UM - Como foi trabalhar com o Frejat? Ele produziu um dos discos pela Warner, certo? Ele soube interpretar a proposta punk ou ele foi meio que jogado ali?


CN - Foi legal trabalhar com o Frejat, ele conseguiu tirar um puta som, o disco é meio inconstante pois já tínhamos problemas internos que só foram resolvidos com a mudança da formação. Mas o Frejat mandou bem, é um produtor muito competente.


UM - Em 1994 vocês abrem os shows do Ramones. Incrível! Foi um sonho que se tornou realidade, né? Vocês ficaram bem amigos do Marky Ramone? Já fiz uma entrevista com ele por e-mail, um cara bem simpático e humilde...


CN - Aquele show foi incrível, tínhamos que matar um leão por dia, entrávamos no palco com o público gritando Hey Ho Let's Go e saíamos aos gritos com Pânico em SP! Ali a banda retomou o seu caminho na cena punk da década de 1990 que era outra, em 1995 chegamos a essa formação que está junta até hoje. Ficamos amigos do Marky e fizemos vários shows juntos na época, tocamos no Close Up Planet com o Sex Pistols, Bad Religion e Marky Ramone And The Intruders em 1996. Também lançamos vários discos clássicos como o Ruas e o Embalado a Vácuo, a década de 90 foi muito legal, deu a cara que a banda tem hoje.


UM - Você sempre foi muito ligado à cena RAP, né? Analisando friamente, ambos os estilos, punk e rap, nasceram nas ruas sujas, temidos pelo mainstream...


CN - Sim, quando eu comecei a tocar não existia o rap. Quando o estilo surgiu vários punks negros debandaram para o Rap, fiquei praticamente sozinho. As primeiras rádios a tocar o novo estilo foram as rádios punks americanas. E eu sou negro, portanto a proximidade é normal, gravei com o Thaide e o DJ Hum em 1993, A música Testemunha Ocular é uma versão estendida de Pânico em SP. Produzi um festival de rap na periferia de São Paulo pela Secretaria de Cultura, tivemos a participação do X do Câmbio Negro de Brasília na música Intolerância e do DJ Branco ex-Pavilhão 9 nessa mesma música e na versão de Periferia do Ratos de Porão, que gravamos no Barulho dos Inocentes.


UM - Quem você considera a maior banda da cena punk brasileira: Ratos de Porão ou Cólera?


CN - Com certeza não é o Inocentes, mas punk mesmo é o Cólera. O Ratos é crossover Metal e Hardcore, mas o Ratos é a maior de todas. O povo adora Metal, eu não gostava, mas agora até consigo ouvir um pouco, mas não gosto muito de Metal.


UM – Você está no Kazagastão, um dos programas sobre rock mais legais da rede. Você passou a escutar/pesquisar mais bandas de classic rock e southern rock por causa do programa ou você sempre teve essa veia de pesquisador?


CN - O grande pesquisador é o Gastão, o cara ouviu tudo, tem todos os discos, leu todos os livros, viu os documentários. Eu só leio o roteiro (rs)! As bandas que eu gosto não dariam um programa, já pensou um programa sobre o Weirdos ou Wire? Seria um fracasso! Ou um sobre bandas Afro-punks como o Pure Hell, Bad Brains ou Radkey? Outro fracasso estrondoso! O Gastão é o cara, por isso o canal se chama Kazagastão (rs).


UM - Clemente & A Fantástica Banda Sem Nome é um rock menos nervoso, mais cantado. O disco Antes que Seja Tarde é algo diferente daquilo tudo dos Inocentes. Alguém te acusou (novamente) de se vender por fazer um som mais trabalhado?


CN - É só fazer esse som mais trabalhado fora do Inocentes que ninguém fala nada (rs), aprendi isso! São quarenta anos tocando a mesma coisa, não ouço e nem faço só isso, com a Fantástica Banda posso relaxar e deixar fluir, liberdade total, adoro tocar com eles. São emoções diferentes que me complementam e isso é bacana, até os shows do Inocentes melhoraram, pois estou mais relaxado (rs).





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