Entrevista Ibrahim Ferrer Jr.
Toda discussão sobre Cuba acompanha uma carga de sentimentos aflorados e discursos inflamados que, a favor ou contra, ultrapassam o limite da saudável troca de ideias. Agora, quando o assunto é a música cubana é possível acalmar ânimos e apaziguar qualquer embate político-ideológico. O bolero, que soa como se as notas fossem adocicadas com mel, e o jazz, que recebeu um tempero próprio na ilha, talvez sejam os maiores patrimônios culturais, não-físico, do país. "Para mim, a grande diferença é que o jazz original não leva a percussão cubana, cada país da América Latina introduziu instrumentos e sons de acordo com sua cultura. Cuba, obviamente, pertence à América Latina e ao jazz cubano também, com suas próprias diferenças", registrou.
O cantor trabalhou na Marinha cubana como engenheiro naval, mas, depois de tanta viagem, mudou-se para a Argentina atraído pela cultura. Plenamente adaptado, Ibrahim não enxerga barreiras musicais no país que o acolheu, pelo contrário. "Toda a música da América tem a união dos sons da Europa misturados com os da África. A partir daí surge não só o jazz, mas todos os outros gêneros da região. Portanto, todos eles têm a mesma raiz em comum. Por exemplo, o bolero, o tango, o blues ou o feeling, todos compartilham as mesmas influências".
O talentoso cubano passará por Rio de Janeiro,17 de março no Blue Note Rio, e por São Paulo, 18 de março na Casa Natura. Sobre os shows Ibrahim adiantou algumas coisas, mas nem tudo, diga-se! "Na verdade, estarei no Brasil com meu grupo e alguns convidados surpresa. O formato do grupo é exatamente o mesmo do meu último disco. Vamos apresentar as músicas de Ibrahim canta para Ferrer, em que há canções clássicas da música cubana, canções argentinas e algumas autorais. Mas com um som mais contemporâneo, no qual o jazz também é explorado".
Ugo Medeiros – A base da música cubana é o tresillo ou a habanera, um estilo musical espanhol que sofreu mudanças em Cuba. Você sabe a origem da habanera cubana? A propósito, o que seria a habanera?
Ibrahim Ferrer Jr. - Sim, é claro, na escola básica aprende-se uma breve história da música cubana, suas bases e suas influências. A habanera, como você diz, é um estilo espanhol que funcionou como base para a música cubana e seu desenvolvimento subseqüente.
UM – Antes da habanera espanhola chegar a Cuba, qual era o estilo musical mais comum na ilha?
IFJ - A primeira música que veio a Cuba foi a contradança francesa, que era uma dança de salão.
UM – Eu li que essa habanera cubana chegou aos EUA mesmo antes da criação do ragtime, por volta de 1900. Esse testemunho do Jelly Roll Morton de 1938 é sensacional: "[Na canção] New Orleans Blues, você pode notar a spanish tinge [N.E: algo como uma 'pitada' rítmica de influências afro-latinas, o que dá uma quebrada naquele tempo 4 por 4 mais tradicional]. De fato, se você não se propõe a colocar essas tinges of spanish [essas pitadas] nas suas canções, você nunca será capaz de ter o tempero certo. Eu chamo isso de jazz". Você poderia falar sobre essa influência cubana na música de Nova Orleans?
IFJ - Bem, eu não estudei em uma escola de música, nem sou teórico do assunto. Mas é claro que a música cubana também fez parte do desenvolvimento do jazz que foi criado e espalhado em Nova Orleans. Toda a música da América tem a união dos sons da Europa misturados com os da África. A partir daí surge não só o jazz, mas todos os outros gêneros da região. Portanto, todos eles têm a mesma raiz em comum. Por exemplo, o bolero, o tango, o blues ou o feeling, todos compartilham as mesmas influências.
UM – Quais foram os primeiros músicos cubanos a ganhar destaque nos EUA?
IFJ - Para mim, em relação ao Jazz, por exemplo, Chano Pozo, famoso percussionista, foi um dos primeiros a se aventurar no gênero e introduziu a percussão cubana, as "tumbadoras" cubanas. A partir daí, nasceu o jazz cubano.
UM - O jazz nasceu por volta de 1920. Como foi a chegada desse estilo em Cuba? Digo, o primeiro jazz a chegar na ilha foi o bebop? Esse foi o tipo de jazz que se misturou à habanera cubana e resultou no "jazz cubano"?
IFJ - o Jazz cubano nasce da mesma influência dos Estados Unidos, a partir dos anos 1940. A banda de Machito Y Sus Afro Cubanos, junto com Mario Bauza e Chano Pozo são aqueles que conseguem um equilíbrio e desenvolvem o jazz cubano. O que se funde é, na realidade, o som cubano com o bebop. Então, nos anos 1970, a banda Irekere e Chucho Valdés continuaram a inovar, misturando raízes africanas com o jazz cubano.
UM – Seu pai, Ibrahim Ferrer, foi um grandíssimo cantor, fez história na música. Primeiramente, ele falava contigo sobre a música e a cena musical antes da Revolução? O verdadeiro amor dele era o bolero ou o jazz?
IFJ - O gênero favorito do meu pai foi sempre o bolero, embora tenha se aventurado em ritmos diferentes e gostado do jazz. Ele sempre falou sobre as vicissitudes que ele teve que passar para se tornar um músico profissional por causa da quantidade de problemas raciais, econômicos e sociais que existiam no país antes do triunfo da Revolução. Depois desse triunfo, foram oferecidas todas as oportunidades. As pessoas que têm uma vocação musical podem estudá-la de forma profissional.
UM – Essa influência do jazz e, consequentemente, da música americana sofreu algum tipo de perseguição pelo Governo Revolucionário? Eu li que o rock foi extremamente reprimido...
IFJ - Não, não foi toda a música perseguida. O Governo considerou que algumas das letras que estavam nas canções poderiam ter algum tipo de penetração ideológica e, portanto, foram censuradas. No entanto, havia muita música de diferentes idiomas, gêneros e lugares. Claramente, houve influência da música americana, o que mais tarde desenvolveu o jazz cubano, o rock cubano, o rap cubano, etc. Lembre-se de que quando a Revolução triunfou no ano de 1957, estávamos no meio da Guerra Fria e foi o próprio Estados Unidos que não deixou que sua música fosse ouvida em nosso país.
UM – O que são "descargas", tipo uma jam session?
IFJ - A "descarga" é a improvisação musical, cada instrumento executa em um momento específico, em um tempo e em um espaço. É uma maneira de mostrar e improvisar, relaxar com a música. Em Cuba, dizemos "descarga" quando um grupo de pessoas, músicos, fãs ou qualquer pessoa que queira participar, chega, canta e toca abertamente. Sem um script ou regras a seguir, uma vez que é uma experiência momentânea e espontânea. Você poderia dizer que eles têm uma semelhança com as jams Sessions do jazz, mas não, já que no jazz é mais um círculo fechado de músicos profissionais.
UM - Você participou na gravação do Buena Vista Social Club, certo? Como foi a experiência? Sem entrar na política, por favor, foi uma das gravações mais lindas de todos os tempos...
IFJ - Sim, tive a sorte de estar lá durante as férias do meu trabalho como marinheiro em Cuba, o que me permitiu acompanhar meu pai e participar desse momento único e maravilhoso com o povo mais talentoso e renomado de Cuba. Eu consegui participar da gravação na percussão e nos coros menores. Também no o álbum de Ibrahim Ferrer, como solista, e com Omara Portuondo, também fazendo percussão e coros menores. Hoje percebo o quão importantes eles eram e eu sei que eles foram uma das coisas mais bonitas que surgiram de Cuba para o mundo inteiro.
UM – Você é cubano, trabalhou como engenheiro naval, mas mudou-se para a Argentina. Motivos políticos ou estritamente musicais?
IFJ - Bem, eu nasci em Cuba e tive a sorte de me formar como engenheiro naval graças à política educativa da Revolução. Meu pai sempre quis que eu estudasse uma carreira universitária, que a música fosse um hobby. Não queria algo profissional para viver, porque ele sofreu muito fazendo nesse trabalho antes de ter sucesso.
Mudei para a Argentina, depois de conhecê-la algumas vezes em viagens de trabalho na marinha mercante. Eu conheci muitos países ao longo dos 29 anos que eu estava navegando. Da Argentina eu gostava da música, dos filmes e da arte. Por causa de sua própria idiossincrasia e porque também compartilhamos o mesmo idioma. Eu decidi ir ao encontro, um desejo íntimo e próprio de experimentar e me relacionar com coisas novas em outros lugares.
Eu sou a favor de todas as transformações sociais realizadas e alcançadas graças à Revolução em termos de educação, saúde, habitação, cultura, etc. Gostaria que cada pessoa pudesse determinar seu modo de vida e pensamento, que eles possam continuar a desenvolver e transformar todas as coisas que estão faltando. Eu não sou um político, minha política é a música.
UM – A música em Cuba é uma política de Estado ou apesar do Estado as pessoas aprendem nas ruas?
IFJ - No mundo inteiro, existem pessoas que nascem com um dom, podem ser musicais, artísticas ou científicas, ou o que for. Em Cuba, o recrutamento de talentos é usado na escola para orientar os jovens e apoiá-los em suas habilidades, sejam dançarinos, astrônomos, médicos ou no que quer que tenham uma vocação.
UM – Como é a cena de jazz na Argentina? Essa onda cubana é comum por lá?
IFJ - A cena de jazz na Argentina compartilha as raízes, como mencionei anteriormente, com o jazz cubano e outros gêneros do continente. Mas, obviamente, tem seus próprios condimentos, os sons reconhecidos do Rio da Prata e as influências indígenas e africanas, além dos europeus.
UM – Falei muito em jazz cubano, há também "latin-jazz". Você gosta desses termos ou são como aqueles rótulos desnecessários?
IFJ - Para mim, a grande diferença é que o jazz original não leva a percussão cubana, cada país da América Latina introduziu instrumentos e sons de acordo com sua cultura. Cuba, obviamente, pertence à América Latina e ao jazz cubano também, com suas próprias diferenças.
UM – Seu disco Al Son de un Homenaje ganhou o prêmio Carlos Gardel em 2008. Poderia falar sobre o disco?
IFJ - Foi uma gravação em homenagem a todos os músicos cubanos, a maioria dos quais já morreu. Uma maneira de adorar e reviver o som cubano para que novas gerações continuem descobrindo. Foram todas as músicas inéditas que fiz junto com vários artistas cubanos que também viveram na Argentina como eu. O prêmio foi uma recompensa muito agradável por todo o trabalho realizado, pela ideia de fazê-lo muito tradicional, com um som limpo e os instrumentos típicos do gênero cubano e sua fraseologia.
UM – A canção Las mujeres son é fantástica! Poderia explicar a letra?
IFJ - A letra da música tem a ver com um tipo de mulher que é calculadora, invejosa ou gananciosa. Quer tudo o que a outra mulher tem. E o homem, que faz tudo por ela, agrada a todos os seus desejos. Mas ela atinge tal ponto que o homem se cansa da situação e decide não agradá-la mais. Então ele vai embora e a deixa em sozinha.
UM – Ainda não escutei o seu último disco, Ibrahim Canta a Ferrer. Poderia falar sobre o álbum?
IFJ - Embora ainda não esteja no Spotify, existem duas músicas disponíveis na plataforma, Dos Gardenias e Juramento. Também está disponível o álbum completo na Amazon, Deezer, Google play, Tidal. Acho que o álbum completo em breve estará no Spotify. Este é um álbum que emergiu do meu desejo de poder cantar com meu pai, o que não foi possível realizar por causa da morte dele. Neste álbum incluí músicas que ele gostava muito, algumas que ele cantou e outras canções inéditas da minha autoria, como, por exemplo, Señora Amor e Falsa razón. Algumas músicas instrumentais com influências de jazz como tronconeando e latin cha, que fiz em colaboração com o meu pianista e diretor musical Raúl Monteagudo. Gravamos tudo em três dias, já que foi algo muito espontâneo pude fazê-lo com o grupo musical que sempre me acompanha. A gravação foi feita com o mesmo formato de quando estou em turnê. Gravamos todos simultaneamente, como se fosse um show. Buscando sempre preservar a conexão e o sentimento genuíno que temos quando tocamos juntos.
UM – Você virá ao Brasil agora em março. Qual o formato do show, solo ou banda? Clássicos cubanos ou músicas autorais?
IFJ - Na verdade, estarei no Brasil com meu grupo e alguns convidados surpresa. O formato do grupo é exatamente o mesmo do meu último disco. Vamos apresentar as músicas de Ibrahim canta para Ferrer, em que há canções clássicas da música cubana, canções argentinas e algumas autorais. Mas com um som mais contemporâneo, no qual o jazz também é explorado. No dia 17 de março será no Blue Note Rio e no dia 18 estaremos em São Paulo, na Casa Natura.