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Entrevista Hermeto Pascoal


Busco uma entrevista com Hermeto Pascoal desde o dia que entrei nessa atividade de crítica musical. Afinal, convenhamos, o cara é foda! Gravou um dos maiores discos da música brasileira ao lado de Airto Moreira, Quarteto Novo, tocou com Miles Davis, rompeu barreiras musicais até então intransponíveis. Um bruxo que misturou ritmos, estilos, sotaques em um grande caldeirão e expandiu os níveis da percepção, uma explosão sensitiva dos chakras.

O velho mestre ensinou ao mundo, em uma jornada de quase cinquenta anos, que a música não é domesticada, é livre, não tem rédeas ou amarras. "Como te falei, eu não dou tempo para as minha preferências, sou 100% intuitivo. Para mim não existe uma música que possa dizer “essa é muito diferente da outra”. Qualquer música do mundo que você escutar, você verá que tem um pedacinho semelhante. Assim como espiritualmente e fisicamente. Por que não musicalmente?".

A música de Hermeto Pascoal é um exercício transcendental, uma quebra de paradigmas, quase como na Alegoria da Caverna de Platão. Uma complexidade que é completamente implodida pela simplicidade de um humilde músico que se recusa a encarar a música como algo intelectualmente construído, pensado. Ele mostrou ao planeta que ela, a música, é deveras sentida, atraída a cada respiração pela energia que move o Universo. "E vê só como as coisas são, quando um cara toca bem, dependendo da sensibilidade de cada um, do nível de sensibilidade e de percepção, aquilo que eu chamo de semelhança, se aproxima mais. Não significa que seja igual a nada. Não precisa ninguém escutar ninguém, parece coincidência mas não é. É uma semelhança de nível musical natural".

Uma entrevista histórica, uma conversa espiritual. Mantida ao máximo com o clima descontraído, inclusive com termos informais não utilizados neste site. Tudo para retratar Hermeto de forma fidedigna. Hermeto é vida. Hermeto viverá mesmo pós-morte. Hermeto desde sempre. Hermetão pare sempre!


Ugo Medeiros – Entrevistei o Carlos Malta, ele diz que a música é um presente do Universo ao planeta Terra. Para mim a música é uma forma de dialogar com Deus. E para você, Hermeto, o que é a música?


Hermeto Pascoal - É o que eu tô te falando, a gente fala sempre em Deus, que Deus existe. Eu acredito, mas não tenho certeza. Na música, que eu chamo de “música universal”, é tão universal que em qualquer planeta ou lugar da Terra você saberá. Então cada um sente a música, com Deus de lado, é o que eu chamo de “a semelhança está em nós”. Acho que a música não tem adjetivos. A música é como Deus e ninguém se compara com Deus. Ele é músico também. Não tem adjetivos, então viva a música!


UM – Podemos dizer que o maior maestro, a maior influência, que passou pela sua vida foi a natureza?


HP - Sinceramente, foi. A natureza da Terra e a natureza de todos os universos, a natureza de Deus, dos Céus. A natureza de lá e daqui. Sim senhor, é isso mesmo, é a natureza. É por isso que eu sou 100% intuitivo.


UM – O Sivuca foi uma pessoa que te ajudou demais no início da sua carreira no Recife. Poderia falar sobre a sua relação com ele?


HP - Quando eu vi o Sivuca pela primeira vez eu tinha catorze anos, ele tinha vinte. Ele me ajudou muito ao me apresentar o dono da rádio, Dr. Francisco Pessoa de Queirós. Quando comecei a tocar, a aprender, o Sivuca veio embora cá paro o sul. Não tivemos muito contato musicalmente, não. A pessoa do Sivuca, digo para você, é uma coisa assim do Universo, um cara SEN-SA-CIO-NAL. Eterno Sivuca!


UM – Como você entrou em contato com o Airto Moreira? Ele foi o grande percussionista com quem você tocou? Acho Quarteto Novo um dos discos mais incríveis da música popular brasileira...


HP - Ele era meu amigo da noite em São Paulo. Nós saíamos juntos para dar canjas, os donos de boates só gostavam daquelas músicas ruins, bem comerciais. Foi uma experiência muito boa de minha parte. Senti que o público gostava e o donos achavam até que virávamos artistas. Dava canja com ele e outros músicos da época. Ele já tocava muito bem bateria (na época ele era mais baterista). Nisso veio o Quarteto Novo e ele me indicou para a banda por causa do relacionamento que já tínhamos, tocávamos juntos à noite. Ele sabia a minha força, ele e a Flora, esposa dele até hoje. Foi muito bonito, a ponto de ensaiarmos e o Trio Novo virar Quarteto Novo. Cada um fazia o seu trabalho, mas depois o Airto foi para os EUA e acabou o Quarteto Novo. Na verdade, não acabou, o disco só acaba quando você não grava; mas, quando grava, pronto!, é eterno. É o que eu falo, gravamos apenas um disco com o Quarteto Novo e esse disco foi muito importante, foi uma abertura muito grande para mim, para eu fazer tudo o que eu tô fazendo hoje. Foi muito lindo, muito bacana. Depois fui para os EUA a convite dele e da Flora. Logicamente, tocava à noite em boates e gravava durante o dia os arranjos, as minhas composições, os discos estão aí, você deve conhecer. Foi um trabalho muito bonito até quando deu para fazer as coisas. Depois cada um foi para o seu lado e estamos aí.


UM – Entrevistei o Billy Cobham, ele falou sobre os brasileiros que tocaram com o Miles Davis no início dos anos 1970. Rasgou de elogios o Airto Moreira, falou muito bem do Alírio Lima. MAS, quando o Billy falou de você, foi algo incrível! Falou que o Miles sempre ficava maluco, pois você era o único que fazia música com a água da piscina (rs). Não se preocupe, não perguntarei se Miles usurpou ou não Igrejinha. Gostaria de saber se foi durante o Miles Davis Group que você pôde, digamos, dar asas à improvisação ilimitada como método?


HP - É como eu falo, existe a semelhança, eu nem o conhecia assim, pessoalmente. Foi quando eu fui para os EUA a convite do Airto que eu fui apesentado ao Miles Davis. O conheci nessa época. Quando ele me viu tocando, todos os músicos, como Herbie Hancock, me chamaram para tocar. Fui para fazer o meu trabalho, eu consegui separar tudo isso aí. No caso do Miles foi uma coisa muito espiritual, parecia que já nos conhecíamos. É só prestar atenção no que o Miles Davis falou um pouco antes de morrer em uma rádio, está lá, gravado em fita. O pessoal da rádio perguntou para ele: “Quando você morrer, gostaria de tocar o quê? Fazer o quê?”. Ele respondeu: “Eu gostaria de tocar, ser um músico, como aquele albino Louco”. Ele me chamava de crazy albine. Isso me deixou muito feliz porque quando cheguei na Europa todos me perguntaram sobre isso, a imprensa caiu em cima disso, perguntaram o que eu achava. Claro que eu fiquei feliz, mas eu não tive contato musical com o Miles Davis, nem de escutar nem de nada. É aquilo que falei, a coisa da música universal, ela não é igual, ela muda como o vento, como o ar muda, como tudo muda, como o tempo muda. A música muda. O Miles me convidou para tocar com ele, ele ia tocar no Japão, mas expliquei que eu estava montando o meu grupo aqui. Agradeci demais na época. Aí ele perguntou se dava para ir pelo menos nessa viagem, iríamos eu e o Keith Jarrett. Aí combinei com ele que viria para o Brasil, passaria quinze dias, depois voltaria para os EUA e seguiria para o Japão. Mas aí eu acabei me atrasando, cheguei alguns dias depois e perdi a oportunidade de tocar com ele. Nunca toquei com ele, apenas naquele disco que está aí até hoje [N.E: Live Evil], gravamos duas músicas minhas, foi o nosso único contato musical. Foi quando ele me conheceu pessoalmente, musicalmente. Eu fui assoviando a minha música e ele tocando, praticamente na hora, uma música chamada Igrejinha. E também Nem um talvez. Foi o nosso único contato. E vê só como as coisas são, quando um cara toca bem, dependendo da sensibilidade de cada um, do nível de sensibilidade e de percepção, aquilo que eu chamo de semelhança, se aproxima mais. Não significa que seja igual a nada. Não precisa ninguém escutar ninguém, parece coincidência mas não é. É uma semelhança de nível musical natural.


UM – Você poderia falar sobre a gravação do álbum Slave Mass? Foi gravado nos EUA, certo? Até hoje esse disco derrete os meus neurônios!


HP - Você pode ver, ele veio, a musica para mim é assim, eu não bolo. Ela vem e eu vou fazendo. Botou no disco, pronto!, é eterno. Se não colocar no disco eu esqueço, tem que gravar. Hoje eu tenho mais de dez mil músicas, já pensou eu me lembrar disso tudo? Mas quando você me perguntou, veio à cabeça, me veio a lembrança, a recordação... Foi, modéstia à parte, mais um trabalho maravilhoso.


UM – Qual foi o maior pianista com quem você tocou?


HP - Eu nunca acho quem é o melhor ou maior, todos são diferentes. Eu falarei alguns que eu gosto. Gosto do Herbie Hancock, Chick Correa, Keith Jarrett, esse é um baita pianista. Aqui no Brasil tem, modéstia à parte, a turma que tocou no meu grupo, todo mundo toca bem. Agora tem o André Marques, o Gilvino também tocou no grupo. Então se eu for citar aqui, meu amigo, não vai dar para falar... Mas escolher “o” melhor não, todos são bons e diferentes e semelhantes, como já disse antes. Agora, se você perguntar quem eu gosto mais tocando, sou eu. Eu gosto de mim, eu me amo tocando e por isso amo eles todos. Inclusive as suas perguntas estão muito boas também. Além de bem informado, você está muito perceptivo, parabéns!


UM – Um dos projetos mais incríveis da história da música é o Calendário do Som, uma música por dia homenageando os aniversariantes. São 365 canções mais uma para o ano bissexto e sempre terminando com “Tudo de bom sempre”. Como nasceu esta ideia?


HP - Essa ideia nasceu, como todas nascem diferentes, viajando. Quando eu ia dormir no avião, sempre muitas horas de voo, sempre vinham umas ideias, um pensamento, sabe? “Você tem que fazer uma música por dia durante um ano e tem que fazer durante o dia, e não pode passar da meia–noite”. A primeira vez que eu imaginei, respondi ao meu pensamento. Mas não adianta pensar em fazer que não faço, só se vier, assim, de estalo. Bom, eu viajava, deixei para lá, ficou um tempão assim. Comecei a escrever aqui no meu sítio que eu tenho aqui no Rio de janeiro, no dia do meu aniversário, 22 de junho. Sem eu bolar, sem eu preparar. Quando eu me lembrava não tinha vontade de fazer, não porque eu não queria, mas porque eu não gosto de esquematizar as coisas. Bom, mas aí comecei a fazer e não parei mais. Só que o pensamento me disse uma coisa, “no dia que você não fizer, vai pagar”. Ele, o pensamento, sabe que tinha dia que eu fazia até dez músicas, uma música não é nada para mim. Mas tinham dias que eu não queria e eu não queria uma coisa fixa, me tira a intuição, gosto da coisa de esperar. Aí pronto! Veio a ideia de homenagear os seres que estão na Terra, os que estão chegando, os que vão, os que estão voltando, cada um com a sua idade. Quem abrir esse livro estará, modéstia à parte, bem homenageado.


UM – Voltando a citar o Miles, ele falava que a música que permitia maior improvisação era a espanhola, por isso gravou Sketches of Spain. Seguindo essa linha, você pensa como ele, existe alguma tradição musical melhor para improvisar? Dentro da música brasileira, qual estilo que permite maior liberdade?


HP - Como te falei, eu não dou tempo para as minha preferências, sou 100% intuitivo. Para mim não existe uma música que possa dizer “essa é muito diferente da outra”. Qualquer música do mundo que você escutar, você verá que tem um pedacinho semelhante. Assim como espiritualmente e fisicamente. Por que não musicalmente? Por isso falei, a minha preferência é o mundo em que estou compondo, é o momento, não cito nome do país nem nada. Todos têm alma, alma de si, por isso chamo de música universal.


UM – Seu último disco, No Mundo dos Sons, é com uma big band. Poderia falar sobre o projeto?


HP - Essa coisa de big band tem muita coisa, muita influencia, dos meus tempos de tocar em boate. Não tocava com uma big band mas tocava diversos standards. O Hugo, dono da boate Stardust, tocava maravilhosamente bem bateria e ele gostava de orquestra. Quando eu tocava o piano ele fazia as preparações. E isso eu com os meus 26, 27, não tinha trinta anos. É aquela história que te falei, na minha cabeça, no meu pensamento, as coisas não têm nome, “isso É assim OU assim”. NÃO! O nome mesmo é música. O que acontece, o que acontecia e aconteceu é que eu fiz os arranjos da big band e você verá que tem influência desde o maracatu, clássico e todos os estilos. Porque é o que eu falo, a música é universal e essas são as influências que tenho do mundo inteiro, também na big band. E outra coisa, não é para ninguém se influenciar pelo que eu me influenciei, ninguém se influencia por ninguém. Você escuta uma música de uma pessoa, digo mais do Hermeto, para criar as coisas que você sente. Por que eu tenho um público assim, graças a Deus, lotado em todo canto? O público não vai para a mesmice, vai para saber quando começa a respirar e a escutar música. Então a big band foi um presente muito lindo que ganhei da turma dessa condução e foi justamente uma surpresa vinda para mim. Nem planejava fazer um disco agora, como disse, eu não bolo nada, apenas coincidiu com o meu pensamento. Estou muito feliz em fazer esse trabalho com a big band, feliz demais, e com o grupo também. E aí você vê como há semelhanças.


UM – Vi um vídeo seu incrível descrevendo os lindos sons que os aparelhos médicos emitiam quando você foi hospitalizado. Já pensou sobre a possibilidade das sonoridades no pós-morte? O silêncio eterno seria a próxima barreira a ser quebrada?


HP - Pois é, é o contrário de tudo o que você perguntou. Vou te responder assim: é aí que não tem barreira! Justamente não tem barreira porque não tem aquela coisa do preconceito disso ou daquilo, não gosto disso ou daquilo. Não tem nada, o negócio é só você fluir, fluir e fazer as coisas. Então, lá em cima... Vê como Deus é brincalhão também, como é que tem uma força dessas e nós não conhecemos fisicamente aqui na Terra? Mas aí o que a gente faz? Deus fica muito contente porque têm uns caras como nós, eu e você, que gostam de fazer as coisas e mostram para Ele que mesmo sem Ele aqui, a gente tá fazendo. “Mesmo sem ele”, digo isso como uma ironia para Deus, claro, brinco muito com ele usando a música e tudo. Digo para você, não existe barreira, a barreira só existe se você der folga para ela. Comigo, bicho, não teve barreira, não teve folga, não teve nada. Até quando eu nasci, mamãe quando falava de mim chorava de alegria, se lembrava do tempo que eu nasci. E quando eu tossia, quando me engasgava, tossia com tanta força que ela pensava que eu ia explodir, mas, não, era para a tosse passar rápido. E isso tudo menininho de colo ainda.


UM – Hermetão, muito obrigado por tudo, se estou hoje aqui trabalhando e pesquisando música você é um dos motivos. Muito obrigado!


HP - Idem! Você me motiva muito com a sua entrevista. Creio que você não tem muita gente para entrevistar dentro da sua percepção, infelizmente não tem muita gente, nem eu para dar uma entrevista com a sua percepção. Tô dizendo para você, tô aberto a qualquer hora e a qualquer coisa. Tá? E que no próximo show você apareça no camarim, o Fabio [empresário] vai nos trazer uma garrafa de vinho para bebermos. Um abraço e até já!





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