Entrevista Sergio Dias
Há mais de trinta anos sem gravar um disco de estúdio os Mutantes voltam à ativa com uma nova formação. Liderados pelos dois últimos membros originais remanescentes, Sergio Dias e Dinho Leme, a banda lançou Haih or Amortecedor. Após uma turnê pelos EUA e Canadá, a lendária banda desembarcou no festival Psicodália (SC) para realizar o primeiro show em terras brasileiras desde 2008. Antes da apresentação, o guitarrista falou sobre a nova formação, o novo trabalho e o mercado fonográfico. Ugo Medeiros – Você poderia falar um pouco sobre essa nova formação e o novo disco (Haih or Amortecedor)? Vocês têm planos de fazer mais shows pelo Brasil? Sergio Dias – Sinceramente, esse será o nosso último show (risos)! É claro que nós faremos mais shows. É por isso que estamos aqui. O destino nos juntou nessa nova formação. Todos nós vivemos para a música, esse é o barato desse grupo. UM – O termo “progressivo”, no Brasil, tem uma conotação pejorativa. Infelizmente o disco Tudo Foi Feito pelo Sol (até então o último disco de estúdio dos Mutantes, 1974) foi considerado “progressivo” apesar de ser extremamente rock. Por que isso acontece no Brasil? Você ficou chateado? SD – Nada da crítica me incomoda. ABSOLUTAMENTE nada. Desde o nosso primeiro disco estamos acostumados a ser vaiados, a pessoas tacando cadeira e quebrando os nossos discos. Não faz a menor diferença o que o cara está achando que toca, o que vocês acham ou que nós achamos. Antes de tudo, fazemos música porque gostamos. É claro que queremos que o disco tenha respeito, mas não podemos ter como objetivo principal agradar ou não à crítica. Tudo Foi Feito pelo Sol teve um momento muito mágico, pois apenas eu fiquei na banda. As pessoas eram muito diferentes das que lá estavam antes. Todo mundo usava ácido naquela época, e aquilo era o restante daquela realidade mundial. O problema é que as pessoas associam progressivo à bandas como Yes e àquelas músicas com cordas. Se esquecem que existe Gentle Giant, King Crimson e John Mclaughlin. Para mim, isso tudo era rock’n’roll, então não faz diferença. Sempre foi e será bobagem. UM – Como foi a reação da Rita e do Arnaldo a respeito dessa nova formação? SD – Acredito que ambos saibam. O Arnaldo passou naquela última formação em 2006 e estava tudo bem. Acredito que ele saiba sim. A questão é que para conversar com o Arnaldo tem que passar pela Lucinha (mulher de Arnaldo), aí fica mais difícil manter qualquer conversa. O Dinho recebeu um email do Arnaldo (na verdade, não sabemos se foi dele ou da Lucinha) dando força. Enfim, tenho certeza que ele está torcendo por nós, nos criticando em alguns pontos, etc. UM – Ao final dos anos 60, os Mutantes fizeram inúmeras parcerias com vários nomes da música popular brasileira. Qual a diferença entre os Mutantes dessa época, os Mutantes “autorais” e a essa nova formação? SD – As coisas acontecem porque têm que acontecer. Os Mutantes tiveram trinta anos para voltar e fazer alguma coisa juntos; tivemos ofertas mirabolantes para gravar algo novo, mas não rolava. Não naquela altura. A volta em 2006 foi algo fora do nosso controle, não sabíamos de nada. O Barbican Center (Londres) ia organizar uma exposição sobre a Tropicália, entretanto nós não estaríamos inclusos na mostra. Foi durante um papo entre um cara e o curador da casa que se chegou à conclusão que Os Mutantes seriam peça fundamental. Mas, até então, a banda estava separada e não se falou mais nisso. De alguma forma, vazou para a imprensa a notícia de que nos reuniríamos novamente. Do nada, passei a receber emails da Mojo Magazine perguntando se voltaria a tocar lá (tinha tocado há pouco tempo como Sergio Dias). Respondi: “É mesmo? Que legal! Aonde? Ah, no Barbican? Legal...”. Fiquei nesse troca-troca de emails até que a rádio KISS, de São Paulo, noticiou que Arnaldo e eu estaríamos ensaiando. A partir daí que passamos a nos telefonar. Foi o quando o Dinho manifestou o interesse de tocar em uma possível reunião. Nos juntamos e logo fomos ensaiar. O primeiro dia foi um desastre, mas a energia foi muito boa! Aí aceitamos. Agora, assim como isso aconteceu por acaso, ao acaso encontrei o Tom Zé no show da Virada Cultural em São Paulo. Foi um barato, pois quando o conheci eu era muito pequeno, logo, não dava pra bater um papo, a diferença intelectual era imensa. Eu só tocava guitarra, não tinha o que falar. Conversando com ele dei a ideia de fazermos músicas juntos e, para minha felicidade, ele aceitou na hora. Tivemos vidas diferentes, mas nos conhecemos no mesmo lugar. Ele virou meu parceiro, assim como todo o restante da banda. Temos composições juntos que não entraram no Haih... Tá sendo muito gostoso retomarmos essas parcerias. Através do Dinho, o Jorge Ben nos deu O Careca. É inimaginável Os Mutantes gravarem sem uma colaboração do Jorge. A Minha Menina nunca foi gravada por ele, tamanha a forma que cunhamos aquela canção. Durante o processo de mixagem falei com o Gil, que se prontificou a colaborar. Uma pena que foi tão em cima da hora e não deu. Quem sabe para o próximo disco? UM – Você pode fazer um balanço sobre essa nova formação? SD – Nós voltamos agora de uma turnê de 32 shows, cobrimos as duas costas dos EUA e Canadá. Do nada, nos vimos em Kentucky, onde o mapa dobra. Passamos dois meses dentro da van sem uma briga. Isso nunca tinha acontecido comigo, foi a minha melhor viagem. Tivemos uma aceitação absurda. O Haih... ganhou quatro ou cinco estrelas em todo o mundo. Muita gente falou que esse disco seria uma “porcaria” ou que “isso não é Mutantes”. Porém, o disco ficou em primeiro lugar durante duas semanas nas rádios colegiais, que são a espinha dorsal da World Music nos EUA, e depois de nove semanas ainda estávamos em sétimo lugar. Mutantes é uma energia. Eu não sou o Mutantes, meu nome não tem a mesma importância que o nome “Mutantes”. Minha música é completamente diferente da banda: compor e tocar debaixo desse nome é diferente de tocar como Sergio Dias. Isso para nós, enquanto brasileiros, é muito importante, pois é um disco em português que saiu na América, Europa e Ásia. Apenas no Brasil não saiu. É uma pena que vocês não estejam participando desse momento. Não depende apenas do grupo. Veja bem, nós mandávamos matérias dos nossos show para o Brasil, mas não tinha eco. Uma pena. Vocês, basicamente, são os nossos donos e não as companhias. Essa responsabilidade passa por vocês. UM – Qual a diferença entre a psicodelia dos anos 60 e essa atual? SD – Depende do ácido que vocês estão tomando. A psicodelia nasceu com o LSD. Vocês são uma nova geração. Não sei o que vocês estão fazendo e tomando, não posso me responsabilizar. “O que significa a psicodelia?” é uma pergunta nossa para vocês. O que significa ser um psicodélico? Are you experienced? Experienced... Experienced... Experienced...? Essa é a questão. UM – O que mais influenciou vocês nesse momento? SD – MUTANTES, sem dúvida! E principalmente vocês. UM – E como se dá a relação Mutantes/mercado? Como você enxerga essa nova era dos downloads? SD – No Brasil, o nosso disco caiu na internet de forma pirata, o que é uma pena. Vocês, jovens, não entram em contato físico com esse novo momento. Um novo disco requer investimento, mas uma vez que as pessoas baixam fica difícil ter retorno. Estamos pensando em possibilidades para o público brasileiro, como fazer um disco com algumas músicas que não entraram no Haih... Gosto do exemplo do Sepultura: teve um festival de heavy metal em São Paulo, mas a banda não foi chamada. Os fãs encheram o saco da produção até incluírem o Sepultura. Nós fizemos a nossa parte, nosso disco está aí e é uma realidade, agora cabe a vocês. A cobrança ao sistema passa por vocês que estão aqui no Psicodália por livre e espontânea vontade. É um movimento espetacular e estamos dando suporte para isso. Não tem polícia dando porrada. Tivemos duas gerações de devastação pela ditadura militar, agora vocês têm que contestar e contestar. O que mais me preocupa é o legado que o militarismo deixou no Brasil: é uma corrupção inerente à cultura. Eu mesmo consumo programas piratas. Até a hora que a pessoa vai para fora e vê que é diferente. Vejo que eu sou ladrão, pois estou roubando propriedade intelectual de outro. Eu estou errado. Cabe a vocês acordar e fazer algo. Pensar numa saída realmente alternativa, não através de Lei Rouanet (onde a conta é paga por outros). O que é ser alternativo? Driblar o sistema e hastearmos a bandeira do pirata no carro? A marginalidade de hoje é diferente de ontem. Hoje a marginalidade é relativa a um golpe de estado que aconteceu no Brasil, à uma situação de corrupção imensa e constante. É ver o Paulo Maluf preso e no dia seguinte estar solto trabalhando na prefeitura. A nossa marginalidade era tocar e alcançar o público apesar da ditadura. O movimento que vocês estão criando (baixar músicas) ainda é embrionário. É legal baixar? Sim, mas quem vai pagar a conta? É uma equação difícil de resolver. Os Mutantes estão com a vida ganha, talvez pudéssemos falar “pronto, tomem o disco de graça”. Mas quem vai pagar a conta de telefone, estúdio, gasolina, etc? No fim, tem um custo x. O que se espera é que o retorno seja de x + y, para que o sujeito tenha condições de sobreviver. Isso se aplica às novas bandas: o cara tem que pagar, estúdio, alimentação, entre outros gastos. O fã dessa banda, de forma inocente, fica entusiasmado e baixa o disco na internet. E o dinheiro do pai investido não volta? A banda tem que crescer e sem dinheiro não tem como. Hoje em dia não caçamos mais, trocamos por dinheiro; se trocássemos música por uma perna de veado seria lindo. É bonito, mas é um pouco utópico. É como dar um tiro no pé. Vocês precisam dessas bandas e essas bandas precisam de vocês. Sem elas só teremos imediatismo: bandas que aparecem e desaparecem, aparecem e desaparecem... Essa “desaparecência” não é legal. O público que consome a arte tem que pagar, assim como nós pagamos quando arrebenta uma corda ou um amplificador. É fácil dizer que as gravadoras são as culpadas e um bando de filhas das putas, mas não é bem assim. Lógico que elas têm uma parcela imensa de culpa. Aí entraríamos na questão político-social do Brasil e toda a ganância e o jabá que envolve. Sempre cobrei do Gil (quando ministro da cultura) que ele acabasse com o jabá. Não entendo isso. Por que ele não assinou um decreto proibindo essa prática? Quando a internet chegar, de fato, nas rádios teremos uma grande mudança.